Monday, October 31, 2005

"Um presente de Natal para uma querida menina em memória dum dia de verão”.

No distrito de New Forest, a oitenta milhas de Londres, na aldeia de Lyndhurst, mora uma velhinha octogenária esquecida do mundo – a senhora Alice Pleasance Hargreaves. A curiosidade jornalística descobriu ser ela a menina Alice do livro que todas as crianças do mundo hoje conhecem - "Alice in Wonderland", ou "Alice no País das Maravilhas", como diz a tradução em nossa língua.

Entrevistada, a senhora Hargreaves contou a origem da obra prima. Chamava-se em menina Alice Liddel, filha do deão do Christ Church College, Doutor Liddel, autor dum léxico muito considerado em todas as universidades. Um professor de matemática desse colégio, senhor Dodgson, era grande amigo de seu pai e freqüentador da casa. Um dia levou-a, e mais duas irmãzinhas, a um passeio de bote pelo Tâmisa.

Estavam em pleno verão. Incomodado pelo revérbero do sol na água, Dodgson acostou o bote e foi refugiar-se com as meninas na única sombra que havia - atrás dum monte de feno. Imediatamente Alice pediu o que todas as crianças pedem - uma história.

- Conte uma história bem bonita, senhor Dodgson.

O professor de matemática era desses homens que não se conhecem, que passam a vida sem se conhecer. Puro gênio literário, criador do mais alto tipo, dos destinados a gozar renome mundial, nem de longe entressonhava isso. Intimado a contar uma história, contou-a. Foi inventando, atento apenas ao interesse que via nos olhos das meninas. A certa altura, já cansado, fez ponto, declarando que o resto ficava para outro dia.

- Não, não! Conte tudo já - elas insistiram - e ele prosseguiu.

Depois, como o sol descambasse, tornou ao bote, e mesmo lá teve de continuar a história.

- Às vezes o senhor Dodgson fingia cair de sono, mas nós o sacudíamos para que não parasse - recordou a senhora Hargreaves ao jornalista que a entrevistava.

Nasceu assim "Alice in Wonderland".

No fim do ano, pelo Natal, Dodgson deu de presente à sua amiguinha toda a história escrita de seu próprio punho, num volume de noventa e duas páginas em caprichada caligrafia e com ingênuos desenhos de sua lavra - desenhos que mais tarde serviram de base para as clássicas ilustrações de John Tenniel. Na última página colou um retratinho de Alice aos dez anos, e na primeira escreveu: "Um presente de Natal para uma querida menina em memória dum dia de verão”.

Os anos passaram-se, como passam as águas do Tâmisa.

Um dia a obra foi publicada e teve aceitação imensa. Julgaram-na os críticos uma obra prima, e as crianças inglesas por ela se apaixonaram com o mesmo ardor das três meninas que a ouviram ao nascedouro atrás do monte de feno. Com a intuição misteriosa do gênio, Dodgson - já então transformado em Lewis Carrol - realizara o milagre de fixar com palavras um movimentadíssimo sonho de criança. Um sonho com a rigorosa lógica dos sonhos, que é um ilogismo incompreensível.

Do mundo inglês emigrou o livro para os demais mundos étnicos deste nosso mundinho terreal. Foi passado para todas as línguas, inclusive a que falamos no Brasil. E acaba agora de entrar para o cinema.

Mas a Alice verdadeira lá seguiu o seu destino pela vida em fora. Casou-se. Passou a chamar-se senhora Alice Hargreaves. Teve dois filhos, que em 1915 foram devorados pelo Moloch da guerra. No cemitério de Lyndhurst duas lápides atraem a atenção dos visitantes: “Capitão A. K. Hargreaves, Brigada de Infantaria” e “Capitão L. R. Hargreaves, da Guarda Irlandesa”. São os filhos de Alice.

Perdida a mocidade, perdidos o marido e os filhos, a velhinha que em criança lidara em sonhos com o Coelho Branco, a Tartaruga Falsa, a Lagarta Malcriada e tantos outros seres do Mundo das Maravilhas, passou a viver de saudosas recordações.

Um dia o seu velho solar em estilo georgiano amanheceu com letreiros: "Mansão histórica - aluga-se com mobília".

Mas a senhora Hargreaves não se mostrava aos pretendentes.

- Ela já não recebe visitas - explicava o mordomo. - Está muito velhinha e doente, já no fim.

Depois do cortejo de desgraças sobreviera a necessidade. A senhora Hargreaves vira-se forçada a vender preciosas relíquias do bom tempo - e entre elas o manuscrito de Dodgson, que conservara consigo durante sessenta e cinco anos.

A notícia de que o manuscrito de "Alice in Wonderland" estava no giro agitou a roda internacional dos negociantes de preciosidades, e mais ainda quando se soube que ia ser posto em leilão. Trocaram-se telegramas entre Londres e a América. Fizeram-se cálculos. Os mais entendidos prejulgaram que os lances poderiam subir a 25.000 dólares. Soube-se que o Museu Britânico estava interessado, o que significava um duelo entre dois países - Inglaterra e Estados Unidos. Os dois colossos iriam disputar a posse do presentinho de Natal que o modesto professor do Christ Church College dera à filha do deão.

Chegou o dia. A casa Sotheby’s, em plena Bond Street, no coração de Londres, começa a encher-se. Mais de trezentos curiosos aglomeram-se na sala para assistir o duelo entre o dólar e a libra. Da Filadélfia tinha vindo expressamente o Doutor Rosenbach, da Rosenbach Company, disposto a demonstrar ao inglês que a América é a América. Outro negociante de Nova York, Gabriel Wells, mostrava grande empenho pelo manuscrito e telegrafara ao seu agente em Londres dando ordem para que lançasse até 15.200 libras.

Vai começar o leilão. O Doutor Rosenbach toma assento à direita do leiloeiro. Vinha depois o senhor Dring, da Quaritch, célebre firma londrina no negócio de raridades e naquele momento representando o Museu Britânico. Depois vinha Míster Maggs, agente de Gabriel Wells.

Lá no fundo da sala, escondida de todos, uma velhinha olhava para aquilo filosoficamente. A senhora Hargreaves viera de Lyndhurst especialmente para assistir à luta pela posse do manuscrito que estivera sessenta e cinco anos numa gaveta da sua escrivaninha. Se ela soubesse... Se tivesse adivinhado...

- Lote número 319! - anuncia afinal o leiloeiro.

Um sussurro percorre a assistência. Era o manuscrito de "Alice in Wonderland". Faz-se silêncio - o silêncio dos grandes momentos.

- Cinco mil! - murmura um pretendente. E' o primeiro lance.

Os assistentes entreolham-se. Cinco mil libras, hein?

- Seis mil! - lança outro. E os lances se sucedem precipitados. Sete mil, oito mil, nove mil, dez mil - a marcha ascensional é de mil em mil libras.

O lance de 10.000 libras, ou sejam 50.000 dólares, trouxe um afrouxamento na intrepidez dos pretendentes. Reconcentravam-se. Faziam cálculos mentais. Pesavam o negócio.

- Dez mil e cem libras! - rompeu o agente do Museu Britânico.

- Mais cem! - gritou mister Maggs.

- Mais cem! - murmurou o Doutor Rosenbach.

Houve uma parada. O leiloeiro correu os olhos pelos candidatos, com o martelo erguido.

- Mais cem - lançou o Museu Britânico, e a luta prosseguiu.

Em certa altura o Doutor Rosenbach murmurou firme:

- Quinze mil e quatrocentas libras! - e esperou.

Os demais pretendentes abandonaram a luta. O martelo do leiloeiro sentiu que era o fim e bateu a pancada que põe termo a tudo.

Ganhara a América. O poder aquisitivo da antiga colônia inglesa afirmava-se mais uma vez naquele duelo com a orgulhosa metrópole. Por exatamente 75.259 dólares o manuscrito de Lewis Carrol ia mudar de continente. Foi o preço mais alto ainda pago por um manuscrito. Assediado pelos repórteres, o Doutor Rosenbach, chefe da Rosenbach Company, declarou que, antes daquele, o manuscrito pago por mais alto preço fora um original de Shakespeare - 75.000 dólares. Outros livros hão alcançado mais - mas não manuscritos. Sua companhia, por exemplo, pagara 106.000 dólares por um exemplar da Bíblia de Gutenberg, e J. P. Morgan dera 200.000 por um livro de horas com iluminuras do século 15. Mas no ramo manuscrito Lewis Carrol passava para o primeiro lugar.

A reunião dissolveu-se. Os repórteres correram a lançar ao mundo a notícia do notável prélio – a senhora Hargreaves, pensativa, foi para a estação tomar o trem de Lyndhurst...



(“Miscelânea”, 1918)

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